Dona Janina da Ressurreição dos Últimos Dias, a santarrona do Povoado das Onze Mil Virgens, tinha um sobrenome bizarro. O carpinteiro costumava dizer que seu nome estava relacionado ao último dia do poder do anjo mau sobre a face da Terra. O último dia que começou no Éden, logo após a queda do primeiro homem, a volta de Jesus em Glória, a grande tribulação e a derrota do anticristo. “Creem Deus Padre!”, se benzia dona Augusta, a lavadeira. Seu Ananias não aliviava quando o assunto era falar mal de quem falava dele. Devolvia na mesma moeda. A quarentona ficou viúva aos vinte anos, depois que seu marido, um aspirante a oficial do Exército, foi morto durante uma rebelião de jovens oficiais de baixa e média patente do Exército Brasileiro no início da década de 1920, revoltados com a situação política do Brasil. Ele e um grupo de tenentes queriam reformas concretas de poder na nação, entre elas, o fim do voto de cabresto, principal articulação dos coronéis do café, para eleger seus congregados na região.
Mesmo sabendo que dona Janina da Ressurreição dos Últimos Dias o tinha como inimigo e cúmplice da morte de seu marido, Lameque deixou de lado às vezes que foi xingado, da cabeça aos pés, ao cruzar o caminho da beata. Jamais respondeu às provocações, sempre passava ao largo, evitando o confronto com a quarentona de boca suja.
- Valei-me, Nosso Senhor Jesus Cristo!
A expressão de espanto amiúde, virou quase uma ladainha na boca da presidente da Confraria dos Letrados. Isaura precisou ser amparada pelo Comprador de Almas. Seus olhos fitavam o caixão da morta. Dona Ruth despertou da angústia e se levantou para ajudar a quase desfalecida. A lavadeira, que estava na cozinha conversando com dona Margarida, trouxe ligeiro uma caneca com água quando alguém gritou que a presidente estava desmaiando.
As filhas, Cristina e Cristiane, que saiam da puberdade para a adolescência, apaixonadas pela brincadeira do “Pato na Lama”, mas eram proibidas pela mãe de participar, já bolavam um plano de estarem presentes na competição de domingo, caso o Prefeito dissesse que a Festa do Pato continuaria. Cristina, a mais velha de doze anos, depois mudou de ideia. Não desejava quebrar o luto da mãe, apesar da criação rígida e das surras que levou quando ainda era uma criança. Cristiane continuou firme na decisão de ir à festa. Contudo, o fato inusitado daquela noite, alterou definitivamente, qualquer sonho das irmãs.
Juarez, o subdelegado Josué, a família De Marco e todos os outros que estavam do lado de fora foram atraídos pelo alarido que se desencadeou no interior da casa. A cachorrinha Lulu estava com as patas suspensas, latindo sem parar. Bodão também começou a latir quando entrou com Juarez. O povo, que conversava na cozinha, se apressou até a sala, seguidos pelo Padre Sizínio. Labão acordou, segurando uma garrafa de aguardente. Juan de Marco, o último a entrar na sala, viu de relance, pela janela, a figura quase fantasmagórica do Profeta, iluminado pela luz da lua cheia. O Profeta apontava a vara de Arão para o esquife quando a viúva ressuscitou.
Dona Janina da Ressurreição dos Últimos Dias se sentou no caixão meio zonza, sem saber direito onde estava. A primeira coisa que disse quando voltou dos mortos foi:
- Estou com sede! Quem pode me trazer um pouco d’água?
A porta ficou pequena para o número de apavorados que tentou passar por ela. Labão, João e Demas ficaram entalados na janela, presos às nádegas da Professora de Canto. Foi uma cena bizarra.
Trecho do romance “O Povoado das Onze Mil Virgens”, no prelo.