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O Tabuleiro

Pawlo Cidade

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ELES VÃO ESQUECER

Há quatros anos atrás vocês se recordam que 24.100, dos 53.200 domicílios de Ilhéus ficaram sem água por vários dias? E que o racionamento que fomos obrigados a cumprir, dia sim, dia não foi resultado de uma longa estiagem atípica que aconteceu em toda a região? Quem jamais imaginaria que Ilhéus, abundante de água potável, por todos os lados, um dia veria a barragem do Iguape, nosso principal ponto de fornecimento de água, chegar ao seu limite crítico? Alguém algum dia imaginaria ver as pessoas atravessando o rio Almada, o rio Fundão e o Cachoeira em quase todo o seu leito a pé?

Vocês se recordam que nessa escassez se alguém visse outro lavar o carro com uma mangueira queria logo partir pra cima e quebrar no pau? Lembra que aquele minadouro do Banco da Vitória formava filas imensas para encher galões, garrafas e até tonéis de água e que, muitas vezes, o indivíduo ia pela madrugada para não ter que pegar fila? Recorda que você ficava furioso por ter que pagar um absurdo pelo galão de 20 litros? Pois é. E você que tinha um tanque de dez mil litros, mas a água acabou com você embaixo do chuveiro cheio de sabão? Se a gente que tem água pensando que um dia ela não pode acabar agiu assim, pensa aí nos absurdos que Itabuna, nossa cidade vizinha, não passou com contrabando, roubo, assalto e homicídio por causa da água? Uma realidade para a literatura científica no ano de 2050, chegou tão rápido que mal tivemos tempo de pensar em estratégias de sobrevivência. Por quê? Porque nunca estivemos preparados. Mas, graças ao nosso bom Deus, a crise de água na região passou. Hoje, Itabuna tem sua própria barragem e Ilhéus volta a ter a abundância aquífera, pluvial e fluvial de sempre.

No entanto, as pessoas voltaram a lavar seus carros e calçadas com mangueira, deixar a torneira da pia aberta quando escovam seus dentes ou lavam sua louça, demoram mais tempo embaixo do chuveiro do que faziam há quatro anos atrás e sequer ligam para a empresa de água e saneamento quando um cano se rompe na rua. “É problema da Embasa, não meu” – é o que sempre ouvimos. “É, elas esqueceram!”

Nestes tempos sombrios e incertos de corona vírus ficamos a imaginar como nos comportaremos, como indivíduos, quando tudo isso passar. Porque vai passar. Isolados me nossos lares assistimos pela mídia que o mundo está mais solidário, mais ético, mais generoso, mais humano. E dizemos que quando sairmos desta pandemia seremos assim, diferentes e muito melhores do que quando entramos. Então, me vem a cabeça a crise hídrica pela qual nós passamos e, tragicamente, a esquecemos. Pobre memória nacional! Pobre memória regional! Somos um país de memória curta que teimamos em eleger aqueles que cuspiram em nossa cara. “Homenageamos torturadores em ruas e praças públicas”. Aplaudimos para quem meteu a mão em nossos bolsos.

Ficar trancado em casa por longos dias, deixar de tomar a cerveja com os amigos, jogar o baba dos domingos pela manhã, assistir no Estádio seu time favorito, saber que não pode ir ao sepultamento daquela amiga ou ao aniversário de um amigo que você tanto gostava será apenas uma mera lembrança na sua vida.

Talvez, nós, artistas, nos ocupemos de escrever crônicas, romances, compor músicas, pintar telas e rimar poesias para te trazer à memória tudo aquilo que um dia o mundo irá esquecer. Aquilo que hoje você acredita que será coisa do passado e que nunca mais voltaremos a viver uma crise hídrica, muito menos uma parada mundial. Faço minhas, as palavras de minha amiga Claudiana Figueiredo: “O novo, se não começar para o mundo começou em mim, à pessoa sem crachá. Só ficará o que conversar profundamente com o meu coração e com o que posso contribuir. Esforço é vida e não quero mais jogar a vida fora”.

No entanto preciso terminar esta crônica parafraseando o grande filósofo suíço Rousseau e chamando atenção para a irônica e sacrossanta natureza humana: O homem nasce bom, mas a sua memória faz questão de fazê-lo esquecer.

Por: Redação O Tabuleiro
Dia 08/05/2020 09h07

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